Depois de duas horas chacoalhando como se estivesse em uma imensa batedeira, o suco da fruta começa a sair da máquina de mansinho, sem pressa para vir ao mundo. Um caldo turvo de cor verde profunda, que mais parece garapa doce de cana-de-açúcar. Mas é azeite de oliva, tem aroma de mato cortado, com um toque amargo e picante de “amarrar” a garganta. Puro extra virgem e feito no
Brasil. A maioria dos consumidores não sabe, mas junto com as chuvas de março o país colheu a sua quinta safra comercial de
azeite. A produção é fruto de um movimento de dezenas de pequenos produtores que, ainda com pouco óleo para oferecer, têm empenho máximo em atingir padrões de qualidade superiores aos dos rótulos à venda no supermercado.
Rústica, a produção demanda alguma tecnologia. No pequeno município mineiro de Andradas, no sul do
Estado de Minas Gerais, um punhado de produtores concentra 8.000 oliveiras encrustadas nos morros da Serra da Mantiqueira. A maioria ainda é jovem demais para gerar azeitonas. O lagar (onde o óleo é processado) se resume a uma casinha de alvenaria ao lado do pomar, que abriga uma máquina de extração de pequeno porte importada da Itália. Todo o processo é mecânico – um grande espremedor de laranjas – e o azeite é feito em poucas horas após a colheita, procedimento vital para manter níveis baixos de acidez e preservação do sabor original das olivas.
O surgimento das pequenas máquinas de extração, de menor custo e alta precisão, está ajudando a revolucionar a indústria do azeite, sobretudo no Novo Mundo, onde predominam as pequenas fazendas em lugares como Califórnia, Austrália, África do Sul e, agora, Brasil. A produção está concentrada no Rio Grande do Sul e municípios da Mantiqueira em
São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. “Este ano nós pegamos o ‘jeito’ da máquina e a produtividade aumentou muito, o que ajudou a compensar os problemas dessa safra, que foi muito prejudicada pelo excesso de chuvas e o inverno mais quente”, conta Carla Retuci, produtora do azeite Borriello. Num dia de céu carregado, Carla se dedicava à produção do azeite do vizinho, que leva a marca Don Giovanni. O industrial Antonio Togni, dono da fazenda ao lado, não tem pressa para construir o próprio lagar. “Vamos investir aos poucos e nos concentrar primeiro na qualidade das frutas”.
Distantes da sofisticação europeia, muitos rótulos brasileiros ainda ostentam o jeitão de cachaça mineira, com nomes como Paiol Velho, Serra que Chora ou Terra Sem Mal. A venda na porteira da fazenda e no comércio do interior predomina, mas produtores mais estruturados estão conseguindo entrar em empórios gastronômicos e restaurantes das capitais. De mansinho, o público começa a tomar contato com marcas novas como as gaúchas Prosperato, Olivas do Sul, Batalha e Ouro de Sant’Ana, a paulista Oliq e as mineiras Borriello e Maria da Fé.
Agora que a cultura da oliveira foi introduzida com razoável sucesso, a jovem indústria nacional acredita que é o momento de acelerar o passo e conquistar um lugar à mesa da gastronomia brasileira “de raiz”. O primeiro desafio, contudo, será romper a indiferença que o azeite sofre entre os cozinheiros profissionais. Há também a barreira do preço, já que o produto nacional, pelo baixo volume de produção, custa caro até na comparação com importados de alto perfil. “O azeite costuma ser muito mal tratado nos restaurantes. A maioria dos chefs conhece pouco e não vê vantagem em pagar por um produto de valor agregado mais alto. Quem tem mais informação sabe que um bom azeite interfere na harmonização do prato e prefere não correr riscos”, avalia o degustador profissional de azeites Paulo Freitas.
O azeite da fé
Sem o peso das tradições e as denominações de origem que mapeiam a produção do
Mediterrâneo, os brasileiros vêm testando com alguma ousadia variedades de diversos países para ver quais que se adaptam mais. Assim como no vinho, o tipo de azeitona determina o sabor do produto. Levando nomes que ainda soam como aramaico para o consumidor leigo, o Brasil aposta em variedades como Arbequina, Arbosana, Picual e Manzanilla (Espanha), Grappolo, Coratina e Frantoio (Itália) e Koroneiki (Grécia). O país já tem até a sua “azeitona nacional”, a Maria da Fé que, acredita-se, evoluiu a partir das primeiras matrizes da Galega portuguesa, plantadas décadas atrás na cidade da Mantiqueira mineira que dá nome à variedade.
O resultado dessa miscelânea vem despertando o interesse de chefs conectados com produtos artesanais. Proprietária do tradicional restaurante carioca O Navegador, militante do Slow Food Brasil e fundadora do movimento de Ecochefs que promove pequenos produtores locais, Teresa Corção é uma das novas convertidas ao extra virgem brasileiro. “Nossa ligação com o azeite vem do colonizador português e isso fez com que o paladar do brasileiro fosse acostumado a produtos de qualidade inferior, que chegavam muitas vezes em más condições de conservação nos navios. É muito interessante ver que os produtores locais estão em sintonia com os azeites mais herbáceos e intensos que são a grande tendência hoje no mundo", compara. Adepta de uma cozinha “simples”, Teresa explora o azeite nacional em pratos de grande aceitação pelo público local, como peixes e saladas. Mas não se intimida em testar fórmulas heterodoxas. “Sou apaixonada por azeite no caldo de feijão e ele também fica maravilhoso com abacaxi”.
Ao contrário do
vinho, a juventude é fundamental para o azeite. Quanto mais fresco, melhor. Por isso a proximidade do produtor com os mercados consumidores é um trunfo importante para os produtores e uma oportunidade para arriscar em criações gastronômicas. Em São Paulo, o coletivo Balaio Gastronomia dos chefs Gabriela Spinardi e Sérgio Campos têm testado receitas mais ousadas em sintonia com a cozinha brasileira nos cardápios que oferecem sob encomenda. Entre eles, estão saladas com carambola, caldinho de abóbora com queijo da Serra da Canastra e costelinhas de tambaqui acompanhadas com purê de batata roxa. Tudo regado com muito azeite de diferentes produtores brasileiros – inclusive a sobremesa, com queijo de cabra da Paraíba e azeite aromatizado na hora com goiaba. “O frescor do azeite que chega bem novo no mercado e a riqueza de sabores amargos e picantes oferecem possibilidades de harmonização muito interessantes com ingredientes que são típicos da nossa cozinha”, diz Gabriela.
Descrente de início, quando fez uma primeira degustação “decepcionante” de azeite gaúcho, o espanhol Xavier Gamez, dono do restaurante Xavier260, de
Porto Alegre, diz que a prova de um segundo produtor mudou sua percepção “da escuridão para a luz”. “Eu me senti na minha terra, a Catalúnia, provando um arbequina de aroma intenso de grama cortada e abacates”, relembra, destacando esta variedade de origem catalã que melhor se adaptou ao Brasil e corresponde por mais de 80% da produção nacional.
Adepto de menus-degustação inspirados na cozinha contemporânea, Gamez segue a linha europeia de valorizar produtos locais regionais de pequenos produtores, sempre que possível. Nessa busca, passou a usar lagostas da Bahia, frutos do mar catarinenses e queijos de cabra do interior paulista. Agora, todo azeite é do Rio Grande, numa escala de 250 litros consumidos ao mês. “Na minha cozinha não entra uma só colher de manteiga”, orgulha-se.
Arnaldo Comin é jornalista e proprietário da Rua do Alecrim Azeites e Gastronomia
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